terça-feira, 29 de outubro de 2024

Estou a ficar velho

Quando em outubro de 2012 escrevi a minha primeira crónica para o Notícias de Coura, e no meio dos meus constantes lamentos sobre a escolha do assunto, falava eu que poderia perfeitamente falar de livros, vício que ainda hoje me ocupa um espaço imenso em casa e me alivia a carteira todos os meses. Só em 2023 tive a necessidade de escrever exclusivamente de livros, ousando dessa vez partilhar com os leitores sete obras que guardo entre aquelas que mais me tocaram, aquelas que temos a necessidade de aconselhar aos amigos que leiam. Hoje, sinto mais uma vez a vontade de voltar aos livros, não para enumerar obras ou escritores, mas para partilhar com os leitores duas experiências, dolorosas num primeiro momento, significativas algum tempo depois, que não posso guardar só para mim.

Nos últimos anos tenho comprado umas largas dezenas de livros usados. Um livro usado, além de ser adquirido por um preço muitas vezes impossível de não aproveitar, traz consigo cheiros, páginas rasgadas, sublinhados e notas de rodapé e, tantas vezes, dedicatórias. Camarate, de Augusto Cid, foi uma das últimas compras. São mais de 900 páginas sobre o atentado que vitimou Francisco Sá Carneiro, 1.º Ministro de Portugal a 4 de dezembro de 1980. Escrevi atentado e não acidente propositadamente. Já li alguns milhares de páginas sobre este dia que mudou Portugal, depois de ler estas 900 certamente continuarei a ter a mesma opinião. Não serei decerto o único a pensar: “- Como estaria Portugal se Sá Carneiro não tivesse sido assassinado?” Melhor, sem dúvida que estaria melhor. Voltando ao livro, abri-o e li a dedicatória: “Só para lembrar um dia… 19-03-1984, com um beijo, A filha.” Confesso que fiquei emocionado ao pensar no alcance que teriam aquelas palavras. Estaria a filha a oferecer ao Pai um livro que o magoara por recordar aquele momento? Será que este Pai conheceria por algum motivo Francisco Sá Carneiro ou outra das pessoas que com ele viajava? Seria este Pai amigo, familiar ou colaborador de Francisco Sá Carneiro? Ou seria apenas que a filha queria que o Pai recordasse aquele dia em que lhe oferecera o livro? Fosse qual fosse o motivo, magoou-me mais ter nas mãos um livro que oferecido por uma filha a um Pai, tinha um dia ido parar às mãos de um alfarrabista, a um leilão online e a um comprador como eu. Trata-se de uma memória de uma família que, por trágicos motivos ou pelo simples passar dos dias já se extinguiu. Pensei depois nos meus livros. Será que um dia vão ter o mesmo destino? Espero ter saúde e presença de espírito para um dia lhes prolongar a vida noutras estantes.

Este pequeno momento de tristeza fez-me recordar um outro quando há cerca de dois ou três anos andava a passear de bicicleta e a explorar alguns locais abandonados, nomeadamente algumas fábricas que noutros tempos foram locais de riqueza e de muito emprego para a população da margem sul. Uma delas está transformada numa enorme lixeira, detritos de obras, de oficinas e de muitas casas que são reconstruídas e onde todo o seu recheio é aqui abandonado. Confesso que há uma parte de mim que adora estes locais, de exploração de coisas abandonadas! Nunca imaginei foi que algum desse lixo me fizesse sentir tão triste. Entre mobílias e objetos decorativos encontrei livros, postais de férias e de Natal, e muitas, muitas fotografias. Não resisti a ver a história de uma família que não conheço, pais e filhos em férias na praia, famílias à mesa a apagar as velas de um bolo de aniversário, batizados, e momentos banais de uma vida, agora abandonados numa lixeira ao sol e à chuva. Provavelmente, já nem são memórias de ninguém. Recordei-me de uma frase que li em tempos: “Um dia, seremos apenas uma fotografia numa moldura no móvel de alguém. Depois, nem isso.”

Depois de ler o que acabei de escrever pensei para comigo: “Parece que estás parvo. Só porque fizeste 50 anos ainda não és assim tão velho para começar a pensar no tempo que te resta! Sabes que é cada vez menos, mas haja paciência!” Anima-te que daqui a duas semanas vais ter muito que escrever sobre orçamento e eleições americanas. E a avaliar pelos últimos episódios, a coisa vai ser divertida!

Crónica publicada na edição 488 do Notícias de Coura, 22 de outubro de 2024





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