terça-feira, 26 de julho de 2022

Um país outra vez a arder

Foi em agosto de 2017 que intitulei outra crónica da mesma forma. Nesse ano, o país ardia por causa dos incêndios, do desaparecimento das armas em Tancos, dos ataques de André Ventura à comunidade cigana e ardia de expetativa pelos festivais de verão. Passados cinco anos, e numa semana em que o país atravessa uma vaga de calor quase insuportável, muitos são os temas que colocam Portugal a arder.

1.º A arder por causa dos incêndios: É quase uma tradição que teima em se perpetuar, os incêndios nos meses de verão são sempre notícia. A principal causa é sempre a mesma, os incendiários. Alguns estão presos, outros não, mas talvez não fosse má ideia metê-los a todos na cadeia nos meses de verão. É só uma ideia. Curiosamente, há dias um recluso incendiário fugiu da cadeia de Santa Cruz do Bispo. Logo na semana de maior calor…

2.º A arder nos hospitais: Durante dois anos de pandemia os problemas na saúde pareciam cingir-se à incapacidade em responder a tantos internamentos, e onde bombeiros, médicos, enfermeiros e auxiliares foram verdadeiros heróis (nunca teremos palavras para lhes agradecer), a normalidade volta a pôr a descoberto os problemas estruturais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), especialmente a falta de médicos. Entretanto, o Sr. 1.º Ministro anunciou que o problema da falta de médicos nas urgências já estava a ser resolvido. Que bom. Ah… mas estão a cancelar as consultas e as cirurgias.

Já em tempos me lembrei de sugerir às autoridades deste país que isentem de propinas os alunos das áreas da saúde, paguem-lhes os livros, as fotocópias e o alojamento. Em troca, quando acabarem o curso têm de ingressar no SNS por um período de 10 ou 15 anos, obviamente com um salário atrativo e com condições de trabalho dignas… e caso não saibam que condições são essas, perguntem ao setor privado.

3.º A arder por causa dos aeroportos: Tudo começou com a ousadia de Pedro Nuno Santos ao anunciar, à revelia do seu chefe, o Sr. 1.º Ministro, que a decisão do novo aeroporto de Lisboa passaria por aguentar até 2035 o Aeroporto Humberto Delgado, complementando-o com o do Montijo, e depois o país ficaria apenas com o de Alcochete, fechando-se os outros dois! Questionado sobre quanto custaria o novo Aeroporto de Alcochete, Pedro Nuno Santos nem sequer foi capaz de ser tão esclarecido como em tempo foi António Guterres e dizer: “É fazer as contas.” Obviamente que não se tratou de nenhum problema de comunicação, Pedro Nuno Santos soube bem o que fez, e fê-lo propositadamente. E na minha opinião, mesmo parecendo que ficou fragilizado, muito mais fraco ficou António Costa pois não teve a coragem política de o demitir. E é fácil perceber a razão, António Costa sente-se mais seguro em manter os opositores perto de si, afastado seria muito mais perigoso. E das últimas coisas que António Costa quer, é que seja Pedro Nuno Santos a suceder-lhe no PS. Para piorar tudo, o aeroporto que interessa ao país, o de Lisboa, está a atravessar dias terríveis, voos cancelados, bagagens perdidas, um autêntico caos. E de quem é a culpa? É das companhias aéreas e da ANA Aeroportos, ou quando venderam milhões de bilhetes não imaginaram que as pessoas os fossem usar!? Se o Ministro não estivesse envergonhado, já tinha vindo prestar declarações, assim, nem temos aeroporto, nem Ministro.

4.º A arder por causa dos preços: Não me vou pronunciar sobre os preços dos combustíveis, até porque estão a descer há duas semanas consecutivas, mas não me admiraria nada que daqui a duas ou três semanas voltem a disparar. De janeiro até agora o preço do cabaz de compras já subiu mais de 20%. A inflação regista valores históricos, está quase nos 9% e a aproximar-se dos valores registados no início da década de 90. E vem aí pior… em breve as taxas de juro vão disparar, os empréstimos vão ficar mais caros e o poder de compra das famílias vai diminuir, esperemos que não se aproxime um incumprimento generalizado das obrigações. Não vem aí o Diabo, ele já cá está. 

5.º A arder por causa dos festivais: Termino como terminei em 2017, os festivais de verão estão aí, cheios de gente, ávida de diversão e alegria depois de dois anos de pausa forçada. O melhor de todos é de 16 a 20 de agosto, numa praia bem perto de vocês!


Crónica publicada na edição 437 do Notícias de Coura, 19 de julho de 2022.

terça-feira, 12 de julho de 2022

A Jéssica é apenas mais uma

Há pouco mais de dois anos, a minha última crónica de maio de 2020 intitulou-se “Não há perdão possível.” Nessa altura, indignava-me eu com a morte de Valentina Fonseca, uma menina de 9 anos morta às mãos do Pai, uma criança a juntar a tantas outras. Nessa mesma crónica, escrevia eu também sobre a indignação de muitos portugueses perante um abutre chamado André Ventura, que servindo-se do caso afirmava que “não desistirá da prisão perpétua para monstros que cometem estes crimes”. Dois anos volvidos, voltamos a ficar chocados com o caso de mais uma criança que morre às mãos de alguns monstros*, numa casa de estranhos, e onde a mãe sabia perfeitamente que a filha estava, e até as razões. Mais uma vez, há muitos portugueses a apelidar André ventura de monstro e oportunista, por voltar a servir-se de uma tragédia para apresentar propostas de lei a defender a prisão perpétua.

Em breves palavras, e a acreditar nos factos apresentados pela comunicação social, não só pela Correio da Manhã TV, mas por muitos outros canais supostamente mais credíveis, a história é simples: a progenitora (não lhe posso chamar mãe) da Jéssica devia dinheiro a certas pessoas, negócios de bruxaria; não lhes tendo pago, eis que lhe ficam com a criança durante uns dias, a ver se a assustavam e se ela se chegava à frente com o pagamento; a tal progenitora não tem tempo para tais problemas, está mais preocupada em participar numa festa da TVi em Setúbal; cinco dias depois devolvem-lhe a criança, algumas horas depois é chamado o INEM mas a Jéssica já estava em paragem cardiorrespiratória, restou-lhes declarar a morte. Se escrever isto já me faz vir as lágrimas aos olhos, imaginar o que aquele pobre anjinho sofreu durante o tempo que esteve em cativeiro faz-me tornar numa pessoa fria e má… tivesse eu o poder dos piores tiranos deste mundo e acreditem que conseguiria ser pior, muito pior.

(Entre este parágrafo e o anterior passaram umas horas, fui beber água, respirar um bocado de ar frio, ver pela centésima vez mais um episódio do Max, voltei a adormecer ao som dos Batanetes e acordei com a preocupação de ser terça-feira, tenho de acabar de escrever a crónica e enviar para o Notícias de Coura).

Tal como escrevi na crónica de maio de 2020, esta é mais uma criança que se junta a tantas outras. Desta vez, não foi morta diretamente pela progenitora, mas, é quase a mesma coisa. A Jéssica estava sinalizada pela CPCJ desde o primeiro mês de vida; a progenitora tinha seis filhos, mas era a Jéssica a única que lhe estava entregue, ao que parece, a CPCJ afirmava não haver riscos para a criança. Nunca entendi bem esta disparidade de critérios das CPCJ’s deste país, umas tão brandas e outras tão inflexíveis e exigentes. Também nunca entendi bem qual a razão de ser necessária a concordância dos Pais para que as crianças possam ser sinalizadas e acompanhadas pelas comissões. Nunca entendi e talvez nunca venha a entender. Aquilo que é certo, e é um facto, é que continuam a acontecer estas coisas, continuam a morrer crianças que estavam sinalizadas, que estavam a ser acompanhadas, cujas CPCJ´s conheciam os riscos, cujos tribunais tinham conhecimento.

Gostava de não voltar a escrever sobre estes casos, mas não creio que desta vez a morte de Jéssica tenha o dom de fazer com que os decisores políticos possam de facto refletir e atuar. Já o não teve a morte da Valentina Fonseca, nem da Joana Cipriano, só para referir os nomes mais conhecidos. Infelizmente, a Jéssica será apenas mais um nome, um nome que andará nas capas dos jornais e nas bocas dos políticos durante dois ou três meses, talvez até menos. É mais ou menos como o próximo terramoto em Lisboa, todos sabemos que acontecerá um dia, só não sabemos quando; nesta triste situação, só falta mesmo saber o nome da próxima criança.

Bem sei que não devemos combater a barbárie com a barbárie, que não nos devemos deixar levar pelo mais perigoso dos sentimentos, a vingança… e que ao fazê-lo estaríamos a ser monstros, como eles. Mas neste momento, não me peçam para dar a outra face, não consigo, talvez nunca venha a conseguir. Deixem-me ser monstro, sob pena de me sentir um monstro ainda pior se alguma gota de compreensão ou perdão ousar tomar conta de mim.

* o termo monstros foi usado nos dias seguintes ao da tragédia pela Correio da Manhã TV para apelidar os 3 suspeitos da morte da criança. Não encontrando outro termo que melhor se adeque, opto por usar o mesmo.


Crónica publicada na edição 436 do Notícias de Coura, 5 de julho de 2022.