terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Tolerância disfarçada

No passado dia 7 de janeiro, em Paris, 2 irmãos franco-argelinos entraram nas instalações do jornal satírico francês Charlie Hebdo vestidos de preto e com armas automáticas. Mataram 12 pessoas. Entre eles, a equipa de cartoonistas do jornal. Proferiram gritos de vingança afirmando terem vingado o profeta.
O Charlie Hebdo é um jornal satírico francês. Trata-se de um semanário recheado de caricaturas e piadas, quase todas dirigidas aos temas da religião e aos extremismos políticos. A principal razão para este ataque foi o ódio extremo pelas caricaturas e pelas piadas que eram publicadas no jornal sobre líderes islâmicos, principalmente sobre o profeta Maomé.
Este ato de terrorismo foi um atentado contra a liberdade de imprensa. Este jornal limita-se a satirizar a sociedade, explorando as permanentes contradições entre os discursos e os comportamentos. E não o fazem somente com os muçulmanos, católicos, judeus e políticos de todos os quadrantes já foram alvo das suas publicações.
O Papa Francisco afirmou que “não se pode provocar, não se pode insultar a fé dos outros, não se pode ridicularizar a religião dos outros”, e que por isso a liberdade de expressão “tem limites”*. Numa primeira leitura senti-me capaz de concordar, mas pouco depois acabei por não o fazer. É muito difícil misturar as palavras liberdade e limites. Costuma-se dizer que a nossa liberdade acaba quando começa a do outro, o que parece difícil é definir essa fronteira. Nas suas publicações, o Charlie Hebdo não apela à violência nem se apoia em discursos de ódio. E sobre apelos à violência e discursos de ódio muito poderíamos escrever, pois a bibliografia é vasta, basta fazer uma pequena recolha dos discursos de alguns líderes muçulmanos e de alguns políticos da extrema-direita. 
Nada justifica um ataque destes. Temos o direito de gostar ou não, e até temos a liberdade de comprar ou não o jornal. Ter sentido de humor é ser capaz de apreciar o que é divertido, é ser capaz de rir de uma coisa que nos poderia deixar enraivecidos e magoados. Devemos ter consciência de nós próprios e a capacidade de rir dos nossos defeitos e limitações, e fazer dos nossos erros momentos divertidos, para ser mais fácil aprender com eles.
O mundo manifestou-se solidário com o jornal. A tiragem histórica de milhões de exemplares esgotou-se num ápice em todas as bancas onde eram colocados à venda. Em Paris, um milhão e meio de pessoas juntou-se numa manifestação histórica pela liberdade e pela democracia.
Em Israel, o diário HaMevaser, um jornal judeu ultra-ortodoxo apagou as mulheres na fotografia que publicou da manifestação de Paris. Numa altura em que se debate o extremismo religioso, e em que a maioria dos muçulmanos se demarca publicamente das ações dos terroristas, há quem não se afaste da sua linha editorial, e fazendo uso da sua liberdade, faça capa com uma fotografia adulterada.
E vamos ouvindo com insistência a palavra tolerância. Sobre ela, muito me apetecia escrever, mas prefiro deixar as palavras do professor Agostinho da Silva: “Entre as palavras e as ideias detesto esta: tolerância. É uma palavra das sociedades morais em face da imoralidade que utilizam. É uma ideia de desdém; parecendo celeste, é diabólica; é um revestimento de desprezo, com a agravante de muita gente que o enverga ficar com a convicção de que anda vestida de raios de sol.”

* http://www.publico.pt/mundo/noticia/oito-razoes-contra-o-papa-1683143

Crónica publicada na edição 265 do Notícias de Coura, 3 de fevereiro de 2015.