terça-feira, 26 de abril de 2016

A mochila da Joana

Nas últimas semanas a Plataforma de Apoio aos Refugiados lançou um desafio a muitas das crianças portuguesas, queria saber o que elas levariam consigo se tivessem de partir do seu país, fugindo de uma guerra e levando apenas uma mochila. A RTP lançou este desafio a várias figuras públicas, entre elas a artista plástica Joana Vasconcelos. O vídeo partilhado na página de facebook da televisão pública recebeu imensas críticas às palavras da artista. Vamos tentar perceber a razão, espreitando para a mochila da Joana Vasconcelos:

1) Lápis e caderno para fazer os desenhos: nada de estranho neste artigo, sendo uma artista plástica seria estranho não o fazer. Seriam sem dúvida úteis para registar a dor e a miséria deste fenómeno que ensombra a atualidade, talvez nem fosse necessário levar lápis de cor.

2) iPad, para aceder à informação e às fotografias. Talvez não fosse má ideia levar antes um pequeno álbum de fotografias, daquelas antigas, impressas em papel de 10 por 15. Não sei muito bem se nos campos de refugiados existe facilidade em carregar a bateria dos equipamentos, e talvez também não exista wireless. Era capaz de ser boa ideia deixar o iPad e levar antes um saco cama e duas ou três peças de roupa quente.

3) Phones para ouvir música. Não condeno. Eu próprio talvez o fizesse também, além de que se trata de um acessório bem pequeno. Ainda bem que a artista não partilhou a sua playlist, sou levado a imaginar o pior. Se pudesse, recomendava-lhe que levasse a música “I could have done more”*, da banda sonora da Lista de Schlinder. 

4) Óculos de Sol. Mais uma vez não condeno a escolha, eu próprio o faria, talvez no meu caso por necessidade, pois são graduados e preciso deles para ver. No caso da artista, sem dúvida que o faz pensando neles como um mero adereço estético.

5) As lãs e as agulhas. Eu preferia levar uma camisola de lã e um par de meias já feitos, mas respeito a vontade e coragem da artista em fazer tricot num campo de refugiados, ou até pelo caminho. Joana Vasconcelos justifica esta escolha afirmando que leva as lãs e as agulhas para “alguma eventualidade”. Será que por algum momento ela pensou como seria estar num barco de borracha, apinhado de pessoas, em mar alto, lutando pela mera sobrevivência? (Estejam descansados, não se preocupem, nalguma eventualidade a Joana veio precavida com agulhas e lã. Seria para rir, se não fosse trágico.)

6) As joias. Portuguesas. A origem das joias parece vir justificar o facto de num primeiro momento todos termos a vontade de a condenar por pensar em joias numa situação destas. (Não me condenem, eu levo as joias, mas as portuguesas, está bem? Pensará assim a Joana.) Não condeno, nem tenho nada que condenar, se calhar até era uma boa opção, quanto mais não fosse para trocar por comida, ou até para conseguir chegar a um país mais seguro.

7) iPhone. Creio que todos nós o levávamos, não o iPhone, simplesmente o telemóvel. No caso da Joana a razão era para comunicar com o mundo. Mas que mundo Joana? Achas mesmo que o mundo quer comunicar com os refugiados? Cada dia que passa me parece mais que não. 

No fundo, não me choca o conteúdo da mochila da Joana Vasconcelos, choca-me o ar sobranceiro e descontraído com que o descreve. Em nenhum momento se consegue perceber na situação de refugiada, mais parece uma “tia” da margem sul a descrever o conteúdo da bolsa que leva para a praia, não uma praia da Grécia ou da Turquia, mas a praia da Costa da Caparica.

* “I could have done more”, traduzido do inglês: “Eu poderia ter feito mais”. O autor desafia todos os leitores a ouvir esta música. Oiçam, fechem os olhos e oiçam… lembrem-se que todos nós poderemos fazer sempre mais. 

Crónica publicada na edição 293 do Notícias de Coura, 19 de abril de 2016.