terça-feira, 19 de maio de 2015

Será justo questionar a fé?

Madrugada de sábado, dia 2 de maio de 2015. A caminho do Santuário de Fátima segue um grupo de 80 peregrinos, na zona de Cernache, Coimbra. De repente, uma viatura em sentido contrário sai da sua faixa de rodagem, despista-se e vai de encontro ao grupo. Cinco mortos e quatro feridos graves. 
Em Portugal, o mês de maio é marcado pelas inúmeras peregrinações que se fazem de muitos pontos do país em direção ao Santuário de Fátima. É uma forma de manifestação de fé e que tem as mais variadas motivações, há quem agradeça o restabelecimento da saúde de familiares ou o sucesso profissional, e há quem acompanhe de forma voluntária todos os que se aventuram nesta caminhada. A fé não precisa de motivos, nem de justificações. 
No entanto, agora que a tragédia se abate sobre todos, é hora de verdadeiramente a questionar. Sempre que uma coisa destas acontece é frequente ouvir de algumas pessoas que é injusto, como pode isto acontecer a quem vai nesta missão de sacrifício? Como pode N.ª Sr.ª de Fátima não proteger aqueles que a vão visitar? Não me vou alongar nas questões de debater a fé, simplesmente por não possuir os argumentos suficientes. Eu, sinto-me como muitos, não consigo compreender a razão de tamanha injustiça, sinto-me tão revoltado que chego a questionar muitas coisas, coisas demais. Será válido nesta situação questionar a grandeza da fé? Não sei. 
Resta-me, na minha condição de ser humano, mortal, deixar algumas considerações: 
- Embora louvável, e demonstrativa de um espírito de sacrifício fenomenal, esta forma de pagar promessas tem um risco demasiado elevado. Percorrer tamanhas distâncias, em estradas movimentadas e em muitos locais mal sinalizadas, quer seja de dia sob movimento intenso, quer seja de noite sem condições de visibilidade, é um comportamento muito arriscado. Nesta situação em particular, o que nos leva ainda mais a questionar a fé, é que os peregrinos viajavam devidamente sinalizados, na sua faixa de rodagem. O problema foi ter havido um acidente, e o que se sabe para já em nada nos atenua a dor e a revolta. O condutor já tinha tido outros acidentes, estava sinalizado como pessoa conflituosa e consumidora de drogas, tentou fugir depois do acidente e até o próprio pai já veio dizer que “a cabeça do meu filho não funciona”. 
- Já por várias vezes foi posta a questão da necessidade de retirar os peregrinos da estrada e tornar os caminhos de Fátima num produto de referência para o turismo nacional, à semelhança do que acontece na vizinha Espanha com os caminhos de Santiago. Com isto, em nada seria beliscada a fé, porque a verdade é que Fátima (localidade), não é mais do que uma cidade turística que vive à custa da fé dos visitantes. Fazer nascer os “caminhos de Fátima”, seria dar condições aos peregrinos de fazer um caminho em segurança, em comunhão com a natureza, com espaços para descansar, para comer e para dormir. Governo, autarquias, Igreja, talvez se sentem um dia destes a uma mesa e possam discutir o assunto. 
Entretanto, os peregrinos continuarão o seu caminho. Com lágrimas de sacrifício ou com lágrimas de dor, seguirão o caminho até à Cova da Iria. Resta-nos rezar por eles, desejando-lhes boa viagem, lembrando-lhes que “pior que não terminar uma viagem, é nunca partir.”

Crónica publicada na edição 271 do Notícias de Coura, 12 de maio de 2015.