terça-feira, 18 de abril de 2017

Fé dispendiosa

Em maio de 2015, a minha crónica intitulou-se “Será justo questionar a fé?”. Nessa altura, não coloquei em causa a fé dos que caminham dias e dias por estradas movimentadas e perigosas, lamentei o destino dos que foram mortos num acidente de viação, provocado por um jovem cheio de problemas que nem vale a pena recordar. 
Daqui a uns dias as estradas vão começar a encher-se novamente de peregrinos. Este ano, muitos dos visitantes da Cova da Iria viajam com uma motivação adicional: ver o Papa Francisco. 
Esta visita do Papa veio por à prova a capacidade da região em receber milhares de pessoas, de lhes proporcionar um alojamento condigno e condições para uma estadia confortável. Empresários e particulares não se fizeram rogados. Depressa começaram a ficar esgotadas todos os lugares disponíveis, dos quais não consigo deixar de destacar alguns: 
- Uma noite para 2 adultos em quarto duplo económico, com estada em saco-cama, por 922€; 
- Um quarto para 2 pessoas com casa de banho partilhada por 1.192€; 
- Uma cama em dormitório de 6 pessoas, com casa de banho partilhada por 500€; 
- Um quarto para 2 adultos por 2.000€, mas com frigorífico e micro-ondas; 
- Um alojamento numa quinta para 12 pessoas, duas noites com pequeno-almoço, por 40.000€; 
Embora o Reitor do Santuário tenha apelado para não haver especulação, os preços aumentaram mais de 50 vezes para o fim de semana da visita Papal. Muito poderia ser escrito sobre a honestidade de todos estes negócios. A justificação está no mercado, quando há muita procura, e quando essa mesma procura está disposta a pagar qualquer preço, o vendedor pode exigir o que bem entender. Isto é o mesmo que vender garrafas de água fresca no deserto, podemos exigir um preço elevadíssimo que os “desgraçados” que estiverem a morrer de sede vão por certo comprar! 
O que se poderia talvez discutir seria a ética, isto é, aquilo que pertence ao caráter. Infelizmente (talvez), nenhum individuo ou organização pode ser obrigado a cumprir determinadas normas éticas. Já quanto aos deveres de cidadania, a discussão poderia também ser interessante mas, nem me vou atrever a escolher tal caminho. Não vou condenar estes “oportunistas”, peço desculpa, empresários inteligentes que aproveitam uma oportunidade de negócio, vou ser mais “louco” ainda, vou condenar, aliás, provocar, aqueles que sustentam estas práticas. Eu sei que a fé e os sacrifícios andam muitas vezes de mãos dadas, mas acham mesmo que vale a pena alimentar estes negócios de ocasião? Acham mesmo que ir a Fátima nesta altura e ver o Papa Francisco é um sinal de fé superior ao de ir a Fátima noutra ocasião qualquer? Não me parece sinal de fé sacrificar uns milhares de euros para ir a Fátima nesta ocasião. 
Pergunto-me: E se por um motivo qualquer ninguém fosse a Fátima nestes dias, e todos os hotéis, pousadas e albergarias ficassem vazios? Não tenho dúvidas que muitos pensariam: “Temos de ter fé que o negócio irá melhorar.” 

“A fé é a firme confiança de que virá o que se espera, a demonstração clara de realidades não vistas.” (Hebreus 11:1)

Crónica publicada na edição 317 do Notícias de Coura, 11 de abril de 2017.