domingo, 14 de fevereiro de 2021

Orienta-me aí uma vacina.

Não é nada que nos deva surpreender. Portugal é um país de “chico-espertos”, já se estava mesmo a prever que ia haver trafulhices, aldrabices e cambalachos.


Quando as vacinas começaram a chegar ao nosso país, alguns canais televisivos arranjaram tema para se ocuparem durante alguns dias. As carrinhas de transporte eram protegidas por uma caravana policial, as equipas de reportagem acompanhavam as viagens, quase fazendo lembrar a visita de Sua Santidade ao nosso país. Depois foram escolhidas as primeiras pessoas a vacinar e, mais reportagens em direto com entrevistas e tudo. Enfim, um “circo”1 desnecessário.

Como as vacinas vão chegar aos poucos ao nosso país, e nem o país tem capacidade para vacinar toda a gente de um dia para o outro, criou-se um plano de vacinação, estabelecendo grupos prioritários. Não me compete dar opinião sequer sobre o mesmo, qualquer português com o mínimo de consciência estará certamente de acordo que em primeiro lugar se devem vacinar os médicos, enfermeiros, auxiliares e bombeiros que estão na linha da frente no combate à pandemia, basicamente, todos aqueles que estão a tratar das pessoas infetadas pois sem eles nem a vacina nos pode valer de muito. Logo de seguida, vacinar os mais idosos e os doentes de risco, pois como tem sido constatado, são os grupos onde a taxa de mortalidade é mais elevada. Até aqui, e embora o processo me pareça lento demais, estava tudo a correr mais ou menos bem, até despertar a “chico-espertice” que devia envergonhar o nosso país.

Em Reguengos de Monsaraz foi vacinado o Presidente da Câmara, pois integra a direção do lar; em Vieira do Minho, o Padre foi adicionado à lista de prioritários pois está a substituir a diretora do lar; em Bragança vacinaram-se todos os órgãos sociais da Santa Casa, mesmo nunca estando perto dos doentes, se calhar são mais importantes que as brigadas de intervenção rápida; em Soure foram vacinados os trabalhadores da secretaria da Santa Casa, o Provedor, a esposa e a filha; em Setúbal vacinaram-se mais de 100 funcionários da Segurança Social, e houve até uma Vereadora que se descuidou e publicou a foto da etiqueta da vacina no facebook; nos Arcos de Valdevez, foram considerados prioritários e receberam a vacina o Presidente da Assembleia Municipal e o Provedor da Santa Casa; em Riba de Ave, o administrador de um Hospital incluiu a filha e a mulher na lista de profissionais prioritários, embora nenhuma delas trabalhe lá; no Montijo, o Provedor da Santa Casa mandou vacinar a esposa, embora esta não cumpra nenhum dos requisitos para ser incluída no grupo prioritário; no Porto, o responsável pelo INEM mandou vacinar os funcionários de uma pastelaria e um empresário da restauração, especializado em francesinhas; … enfim, isto dá para exclamar: “cada cavadela, sua minhoca”. Pior do que o ato são depois as desculpas apresentadas pelos visados, especialmente a de que: “Havia vacinas que sobravam, e para não se estragarem…”

Entretanto, no país real, a percentagem de profissionais de saúde vacinados ainda está longe dos 50%, houve um hospital onde falhou o abastecimento de oxigénio e num outro acumularam-se ambulâncias à porta. O coordenador do plano de vacinação vem dar a conhecer o trabalho já feito, cheio de sorrisos e boa disposição, e quando questionado sobre as polémicas das vacinações indevidas, tece comentários políticos de crítica aos eleitores de um determinado partido. Para ajudar à festa, é publicado um despacho do Sr. 1.º Ministro que alarga a vacinação prioritária aos órgãos de soberania, incluindo funcionários, a todo o Governo e Secretários de Estado. E só depois disto se saber, é que resolveram incluir os maiores de 80 anos nos grupos de vacinação prioritária.

Diz-se que em tempo de guerra não se limpam armas, a mim parece-me que nesta guerra está a valer tudo, é o salve-se quem puder.

1 O autor utiliza a palavra circo no sentido de espetáculo com o intuito de distrair o povo.

Crónica publicada na edição 403 do Notícias de Coura, 9 de fevereiro de 2021.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Sem saldos nem promoções.

Quase dá vontade rir. Quase dá vontade de colocar um ponto de exclamação no final deste título, mas a situação é grave demais para tal. Quando este texto chegar às mãos dos leitores é provável que a situação pandémica em Portugal esteja bem pior. Escrevo-o uns minutos depois de ouvir o 1.º Ministro António Costa anunciar o ajuste de medidas neste segundo período de confinamento. Espremidas pouco acrescentam, muitos especialistas têm caraterizado as medidas como inadequadas e insuficientes, ainda no dia de hoje o Bastonário da ordem dos Médicos afirmou que “já passámos a linha vermelha”, exigindo um confinamento a sério. Embora o discurso seja de facto alarmista, o governo de António Costa parece ainda não ter percebido a gravidade da situação. A avaliar pelas medidas adicionais apresentadas hoje é o que parece, ou alguém acredita que vai ser a proibição da venda ao postigo e a proibição de campanhas de saldos e promoções, que vamos abrandar os contágios? Pior, ao limitar os horários de funcionamento de algumas lojas ao fim-de-semana só vai fazer com que haja concentração de pessoas no horário em que estão abertas, já assim foi no passado e houve quem alertasse para tal erro. São muitos os especialistas que defendem o encerramento das escolas, mas a teimosia do Senhor 1.º Ministro nesta matéria tem levado a melhor. Não acredito que o consiga fazer durante muito mais tempo, quando o fizer já vai ser tarde, aliás, já hoje começa a ser tarde para as centenas que não sobrevivem. O Senhor 1.º Ministro tem razão quando disse há dias que os números de casos de infeção nas escolas eram residuais, de facto eram, hoje já não são assim tão residuais, mas o que ele sabe mas não diz é a razão para tal: Nas escolas não há casos porque não há testes, se de um dia para o outro fosse testada toda a comunidade escolar, Portugal batia todos os recordes possíveis e imaginários de infeções por milhão de habitantes. Se calhar tem razão um aluno meu, brasileiro, que me diz: “Professor, as pessoas só ficam doentes porque vão no médico fazer exames!”

Nos últimos dias vimos Portugal chegar ao 1.º lugar mundial em número de infetados por milhão de habitantes, vimos uns milhares de portugueses a “fazer passeios higiénicos”, muitos deles sem máscara, ou a passear uma trela sem animal. Está mais do que visto que o povo perdeu o medo ao vírus, estranha altura esta para o fazer, agora que ele está a matar como nunca, numa altura em que os hospitais estão a rebentar pelas costuras, quando já se ouve dizer que os médicos têm de escolher entre quem vive e quem morre.

Em tempos de crise como os que vivemos ninguém deseja estar na pele de quem tem de tomar decisões, mas como já em tempos escrevi, os nossos governantes estão nos cargos por iniciativa própria, o povo confiou-lhes o voto, tem de lhes exigir responsabilidades e coragem política. Isto não vai lá com confinamentos a brincar ou com o “sobressalto cívico” que o senhor 1.º Ministro fala. Não adianta ir acrescentando limitações sobre limitações, sobretudo sobre alguns setores do comércio e dos serviços. Estes tempos exigem medidas corajosas, duras, e está na hora de serem duros com os infratores. Espero escrever a próxima crónica ainda com as escolas abertas, e com os números da pandemia a desmentirem tudo aquilo que agora escrevo. Não acredito que aconteça, mas espero.

Para terminar, um último desabafo. Ouve-se por aí que o governo não toma medidas corajosas porque estamos à porta das eleições presidenciais, e que medidas impopulares podiam provocar ainda mais abstenção. E nas atuais circunstâncias, a abstenção podia beneficiar um determinado candidato, perigoso. Desta vez não vou votar, não alterei a minha residência a tempo de o fazer, e por mais vontade que tenha de visitar Paredes de Coura, e tivesse nas eleições um motivo válido para me deslocar entre concelhos, nenhum dos candidatos me merece tamanho sacrifício. Já em tempos fiz 500 km num dia para votar em José Sócrates, e num outro, mais de 700 km para votar em Mário Soares. Sei que votar é um dever cívico, mas é também um direito. E portanto, vou exercer o meu direito de não o fazer.

Crónica publicada na edição 402 do Notícias de Coura, 26 de janeiro de 2021.