terça-feira, 14 de outubro de 2014

A minha fábrica de salsichas

Início de setembro, começou o ano letivo. Sim, porque o trabalho das escolas não começa apenas quando chegam os alunos, cada ano letivo começa a ser preparado com meses de antecedência, e nas primeiras semanas de setembro o trabalho é verdadeiramente assustador. Eu, um simples professor de informática, e com apenas 230 alunos, tive 15 reuniões de trabalho na 2.ª semana de setembro! Isto não é nenhum lamento, apenas mais uma farpa que atiro aos que insistem em dizer que os professores trabalham pouco, têm 3 meses de férias e ganham imenso dinheiro!
A primeira semana ia correndo e milhares de professores continuavam sem saber em que escola iriam dar aulas. A alguns deles, o Ministério ordenou que se apresentassem na escola onde tinham estado no ano passado. Lá foram eles, fazer centenas de quilómetros para se apresentarem em locais onde muitos sabiam que não iriam ficar a trabalhar.
Entretanto, o Ministro da Educação e Ciência pediu desculpa aos deputados, aos professores, aos pais, aos alunos, num ato único, de verdadeira coragem. Pelos vistos, alguém dos serviços se enganou a fazer uma fórmula matemática, que fez com que milhares de professores se vissem colocados numa lista ordenada que não traduzia com rigor as habilitações de cada um. Enfim, uma lista mal feita, professores à espera de colocação, escolas sem professores, tudo normal. Mas quem é que se enganou a fazer a fórmula matemática? Deviam ser castigados todos os professores de matemática desse irresponsável, nunca o deviam ter passado de ano.
Três semanas depois do início do ano letivo, ainda há escolas a funcionar a meio gás, umas por falta de professores, outras por falta de assistentes operacionais.
No meio de tanta normalidade, sistematicamente anunciada pelo Primeiro-ministro, eis que surge algo que dá vontade de apelidar de anormalidade, só não o faço para não me acusarem de estar a ofender alguém. Então não é que Passos Coelho, quando comentava o relatório do Conselho Nacional de Educação sobre o setor, e na tentativa de justificar que não basta ter apenas mais alunos, é preciso garantir a qualidade dos resultados, dispara: “Sabemos que aumentar a chamada salsicha educativa não é a mesma coisa que ter um bom resultado educativo.”
Muito já foi escrito sobre a origem desta analogia, fica claro que está a comparar a escola a uma fábrica de enchidos, onde os operários se limitam a executar a sua tarefa, produzir algo que cumpra os requisitos estabelecidos por quem manda. Embora em parte eu possa concordar com a ideia da escola “formatar” os alunos, por outro lado irrita-me que o Primeiro Ministro faça estas afirmações. A razão é simples. Apesar da tão anunciada autonomia das escolas, na maior parte das questões essenciais os professores e os alunos nunca são ouvidos, as decisões são tomadas pelos ministros ou secretários de estado, e quem os aconselha são os grupos de trabalho e as comissões nomeadas pelos próprios, de entre os mais competentes amigos, primos e enteados que conhecem. Como é que querem que não se “formatem” os alunos, quando a legislação com que nos inundam é tanta e tão limitativa? Já para não falar no financiamento. Quase me apetecia fazer uma comparação entre as escolas públicas e privadas, mas não quero ser mais um dos que acusa este governo de defender os interesses privados. Só gostava de saber onde é que algumas escolas vão arranjar dinheiro para oferecer computadores aos alunos? E cartas de condução? Sim, já vi um outdoor em que uma escola oferecia a carta de condução aos seus novos alunos.
A minha fábrica de salsichas (a escola básica e secundária de Paredes de Coura), continua à espera das prometidas obras de requalificação. Este ano temos turmas com 30 alunos! Nem imagino o que deve ser uma aula de matemática, com o professor a prestar o apoio individualizado que cada aluno precisa. E as aulas experimentais de Físico-Química, Biologia ou Ciências?! Na minha sala de informática tenho 30 computadores, pois é assim que deve ser, cada aluno deve poder trabalhar individualmente num só. Aqui que ninguém nos ouve, a semana em que este artigo vai ser publicado, coincide com a primeira aula prática, aquela em que os computadores vão ser todos ligados em simultâneo! Não pensem que eu não testei isso com a sala vazia. Já o fiz. Mas nunca se sabe... Em tudo isto, os únicos que devem estar satisfeitos são os professores de educação física. Podem trabalhar com 2 equipas de futebol de 11, e ainda têm suplentes!
Vou terminar com um facto. Todas as salsichas que deixaram a linha de produção em julho e concorreram ao ensino superior conseguiram colocação. Não sei se o segredo está na massa, nos ingredientes, nos operários ou no forno. Não lhes podemos oferecer a carta de condução, mas vão daqui a conduzir o seu próprio futuro!

Crónica publicada na edição 257 do Notícias de Coura, 7 de outubro de 2014.