terça-feira, 12 de julho de 2022

A Jéssica é apenas mais uma

Há pouco mais de dois anos, a minha última crónica de maio de 2020 intitulou-se “Não há perdão possível.” Nessa altura, indignava-me eu com a morte de Valentina Fonseca, uma menina de 9 anos morta às mãos do Pai, uma criança a juntar a tantas outras. Nessa mesma crónica, escrevia eu também sobre a indignação de muitos portugueses perante um abutre chamado André Ventura, que servindo-se do caso afirmava que “não desistirá da prisão perpétua para monstros que cometem estes crimes”. Dois anos volvidos, voltamos a ficar chocados com o caso de mais uma criança que morre às mãos de alguns monstros*, numa casa de estranhos, e onde a mãe sabia perfeitamente que a filha estava, e até as razões. Mais uma vez, há muitos portugueses a apelidar André ventura de monstro e oportunista, por voltar a servir-se de uma tragédia para apresentar propostas de lei a defender a prisão perpétua.

Em breves palavras, e a acreditar nos factos apresentados pela comunicação social, não só pela Correio da Manhã TV, mas por muitos outros canais supostamente mais credíveis, a história é simples: a progenitora (não lhe posso chamar mãe) da Jéssica devia dinheiro a certas pessoas, negócios de bruxaria; não lhes tendo pago, eis que lhe ficam com a criança durante uns dias, a ver se a assustavam e se ela se chegava à frente com o pagamento; a tal progenitora não tem tempo para tais problemas, está mais preocupada em participar numa festa da TVi em Setúbal; cinco dias depois devolvem-lhe a criança, algumas horas depois é chamado o INEM mas a Jéssica já estava em paragem cardiorrespiratória, restou-lhes declarar a morte. Se escrever isto já me faz vir as lágrimas aos olhos, imaginar o que aquele pobre anjinho sofreu durante o tempo que esteve em cativeiro faz-me tornar numa pessoa fria e má… tivesse eu o poder dos piores tiranos deste mundo e acreditem que conseguiria ser pior, muito pior.

(Entre este parágrafo e o anterior passaram umas horas, fui beber água, respirar um bocado de ar frio, ver pela centésima vez mais um episódio do Max, voltei a adormecer ao som dos Batanetes e acordei com a preocupação de ser terça-feira, tenho de acabar de escrever a crónica e enviar para o Notícias de Coura).

Tal como escrevi na crónica de maio de 2020, esta é mais uma criança que se junta a tantas outras. Desta vez, não foi morta diretamente pela progenitora, mas, é quase a mesma coisa. A Jéssica estava sinalizada pela CPCJ desde o primeiro mês de vida; a progenitora tinha seis filhos, mas era a Jéssica a única que lhe estava entregue, ao que parece, a CPCJ afirmava não haver riscos para a criança. Nunca entendi bem esta disparidade de critérios das CPCJ’s deste país, umas tão brandas e outras tão inflexíveis e exigentes. Também nunca entendi bem qual a razão de ser necessária a concordância dos Pais para que as crianças possam ser sinalizadas e acompanhadas pelas comissões. Nunca entendi e talvez nunca venha a entender. Aquilo que é certo, e é um facto, é que continuam a acontecer estas coisas, continuam a morrer crianças que estavam sinalizadas, que estavam a ser acompanhadas, cujas CPCJ´s conheciam os riscos, cujos tribunais tinham conhecimento.

Gostava de não voltar a escrever sobre estes casos, mas não creio que desta vez a morte de Jéssica tenha o dom de fazer com que os decisores políticos possam de facto refletir e atuar. Já o não teve a morte da Valentina Fonseca, nem da Joana Cipriano, só para referir os nomes mais conhecidos. Infelizmente, a Jéssica será apenas mais um nome, um nome que andará nas capas dos jornais e nas bocas dos políticos durante dois ou três meses, talvez até menos. É mais ou menos como o próximo terramoto em Lisboa, todos sabemos que acontecerá um dia, só não sabemos quando; nesta triste situação, só falta mesmo saber o nome da próxima criança.

Bem sei que não devemos combater a barbárie com a barbárie, que não nos devemos deixar levar pelo mais perigoso dos sentimentos, a vingança… e que ao fazê-lo estaríamos a ser monstros, como eles. Mas neste momento, não me peçam para dar a outra face, não consigo, talvez nunca venha a conseguir. Deixem-me ser monstro, sob pena de me sentir um monstro ainda pior se alguma gota de compreensão ou perdão ousar tomar conta de mim.

* o termo monstros foi usado nos dias seguintes ao da tragédia pela Correio da Manhã TV para apelidar os 3 suspeitos da morte da criança. Não encontrando outro termo que melhor se adeque, opto por usar o mesmo.


Crónica publicada na edição 436 do Notícias de Coura, 5 de julho de 2022.



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