segunda-feira, 29 de junho de 2020

Qualquer vida importa.



Em Portugal, no passado mês de março, três inspetores do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) prenderam um cidadão ucraniano com fita-cola e algemas durante mais de 15 horas numa sala do aeroporto. Esse interrogatório teve como resultado a morte de um homem de 40 anos que vinha para o nosso país para trabalhar na construção civil, e teve a triste ideia de mentir dizendo que era turista. 

Nos EUA, George Floyd foi apanhado pela polícia depois de ser acusado de ter pago um maço de cigarros com dinheiro falso. Detido pela polícia, e após alguma resistência acabou por ser controlado por um polícia que, com o joelho em cima do pescoço, precisou apenas de 9 minutos para lhe acabar com a resistência, apesar dos vários pedidos de socorro da vítima dizendo que não conseguia respirar. 

Estes dois casos têm um denominador comum: o abuso da força por parte das autoridades policiais, ambos condenáveis obviamente. Relativamente ao cadastro de cada uma das vítimas não devemos ter opinião, por um lado por não existir informação relativamente ao cidadão ucraniano, por outro, e mais importante, não é o cadastro criminoso* de George Floyd que justifica a atuação policial. Não devemos chegar ao extremo a que chegou Ron Johnson, um executivo de uma empresa de jogos que afirmou que “George Floyd foi assassinado pelo seu estilo de vida criminoso”. Um outro ponto comum entre estes dois casos foi a detenção dos polícias envolvidos. Esperemos pelos julgamentos. 

O que distingue completamente estes casos foi a reação da população. Nos EUA a população de muitas cidades saiu para a rua, e à boleia dos protestos contra o preconceito racial e a violência policial, incendiaram e saquearam inúmeros estabelecimentos comerciais, destruindo carros e edifícios. Percebe-se a indignação, a causa é mais do que justificável, agora quando vemos centenas de pessoas de sorrisos rasgados a fugir de lojas com produtos roubados… 

Portugal também se juntou aos protestos que ocorreram um pouco por todo o mundo. Lisboa esqueceu durante algumas horas as regras de saúde pública impostas na atual pandemia e aderiu à causa “Black Lives Matter”. Milhares de pessoas, sobretudo jovens, percorreram as ruas da capital gritando palavras de ordem e empunhando cartazes defensores da causa. Num desses cartazes, nas mãos de um jovem “provavelmente inconsciente”, podia ler-se a frase: “Polícia bom é polícia morto”. Talvez o jovem se tenha enganado, queria escrever bandido e enganou-se e escreveu polícia. Se o jovem não se tivesse enganado, eu próprio lhe enviaria um abraço solidário, assim, só me resta desejar-lhe que tenha uma vida pacífica, e que nunca venha a precisar das forças de segurança. Um outro jovem, mais empolgado, gritava cara a cara com um polícia: “Tem vergonha por estares aqui, sou eu que te pago o salário.” É urgente identificar este jovem com este espírito tão bondoso, e importa também informar o Sr. Polícia que não devia aceitar o salário pago por um cidadão comum. Dias depois, muros e estátuas pintadas. E absurdo dos absurdos, escrever a palavra “Descoloniza” na estátua do Padre António Vieira, é mesmo de quem não está atento na escola, ou será que não aprendeu que o Padre António Vieira se destacou como Missionário no Brasil e defendeu os direitos dos povos indígenas combatendo a sua exploração e escravização? 

Escrevo tudo isto num tom irónico, mas revoltado. Envergonha-me ver o meu país aderir a estas causas (a causa merece-o obviamente), e depois esquecerem causas como as crianças que são assassinadas pelos pais, os idosos agredidos e abandonados, e o caso particular de Ihor Homeniuk, um ucraniano que queria vir trabalhar para Portugal. Portugal tem muitas causas internas sobre as quais se pode revoltar e manifestar, provavelmente não lhe trarão tanto mediatismo internacional, mas isso era o que deveria importar menos. O racismo existe, não adianta negar, esconder ou tentar disfarçar. O que me parece é que manifestações destas podem ter um efeito exatamente contrário. 

O título desta crónica esteve para se chamar “Ucranian Lives matter”, mas a tempo alterei para melhor, pois qualquer vida importa. 


* O autor adjetiva o cadastro de George Floyd como criminoso no sentido literal da palavra, “pessoa que já cometeu um crime”. (George Floyd esteve preso 5 anos por assalto à mão armada e invasão de domicílio).

Crónica publicada na edição 389 do Notícias de Coura, 23 de junho de 2020.

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