terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Vamos é ver a bola

Alguma da indignação sobre os direitos humanos no Qatar estava em lume brando há alguns dias, só levantou fervura quando Marcelo Rebelo de Sousa, entrevistado depois do jogo de preparação de Portugal com a Nigéria, deixou escapar a frase: “O Qatar não respeita os direitos humanos... Mas, enfim, esqueçamos isto”. Foi uma frase infeliz, mas teve o mérito de chamar para a praça pública o assunto. Desde aí, não há dia em que não se leiam nos jornais e se oiçam declarações políticas sobre o assunto. Apetecia-me escrever que tudo não passa de hipocrisia e populismo, mas não posso. De populismo só pode ser acusado aquele partido perigoso de extrema-direita que ousou eleger 12 deputados, ficar em 3.º lugar e ter quase 400 mil votos. Afinal, até a democracia pode ser um regime perigoso.

Foi em 2010 que o Qatar foi escolhido para organizar o Mundial de 2022. Nessa altura, os planos da FIFA (sempre pensei que as escolhas premiavam o mérito das candidaturas, mas pelos vistos, havia planos!), eram escolher a Rússia para organizar o Mundial em 2018 e os EUA em 2022. Mas, eis que o Sr. Platini, na altura Presidente da UEFA, é convidado para almoçar com o Presidente francês Sarkozy e com o príncipe herdeiro do Qatar, que lhe diz, “Veja o que pode fazer, com os seus colegas da UEFA, pelo Qatar, quando o Mundial for atribuído.” As suspeitas de corrupção surgiram desde logo, e revelaram uma grande teia de interesses e trocas de favores. Platini chegou mesmo a ser detido em 2019 por suspeita de corrupção, mas acabou libertado após interrogatório. Depois daquele almoço Platini ligou a Joseph Blatter (na altura Presidente da FIFA) e disse-lhe: “O nosso plano não vai resultar. Não podia dizer que não ao meu Presidente.” E foi assim que aconteceu, graças aos 4 votos de Platini é que o mundial foi para o Qatar. Joseph Blatter não deixa de ser hipócrita ao vir afirmar agora que foi um erro escolher o Qatar, e que já o tinha dito em 2013. De facto, disse-o, mas com a justificação das condições climatéricas.

Vir abanar agora a bandeira dos direitos humanos é uma hipocrisia, ou será que só agora é que se aperceberam que no Qatar os direitos humanos são violados diariamente? Que é um país que pune a homossexualidade? Que é um país que não respeita os direitos das mulheres? E que dizer do mundial da Rússia em 2018? Era nessa altura a Rússia um país bem-comportado e respeitador dos direitos humanos e da soberania dos povos? Tanto a Comissão Europeia, como os Estados Unidos e a ONU tinham considerado a anexação da Crimeia em 2014 como ilegal. Ainda assim, no mundial de 2018 estavam lá todos.

Em Portugal, a Assembleia da República aprovou a viagem oficial do Presidente da República ao Qatar, para estar presente no 1.º jogo da nossa seleção. Marcelo Rebelo de Sousa não se cansa de anunciar que vai assistir ao jogo e falará sobre direitos humanos. No Qatar, o nosso embaixador é chamado pelo governo do país que afirma não gostar das declarações do Presidente da República e do 1.º Ministro sobre direitos humanos. Perante isto, alguns partidos condenam a ida do Presidente ao Qatar e votam contra, mas não os vejo condenar a intervenção das autoridades do Qatar na soberania nacional quando chamaram o embaixador e ameaçaram tomar medidas mais drásticas. Condenam o Qatar pela desrespeito dos direitos humanos e pelos seis mil e quinhentos mortos na construção dos estádios. Ainda não os vi condenar com veemência o desrespeito pelos direitos humanos que existe no nosso país, nomeadamente a exploração de mão-de-obra estrangeira em explorações agrícolas no Alentejo. E se de facto fazem bem condenar e chamar a atenção para o que se passa no Qatar, melhor fariam se o fizessem dentro das nossas fronteiras. Lá dificilmente se fazem ouvir, cá só não resolvem a situação se não se empenharem. E é o que de facto acontece, como disse há dias o Sr. Ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, “o tráfico e exploração de imigrantes é um problema estrutural”, é se calhar uma espécie de tradição, uma coisa que existe e sabemos ser condenável, mas pouco ou nada se faz para se combater.

E enquanto tudo isto se discute, ou parece que se discute, o futebol toma conta dos dias, e mesmo sem cerveja, o povo continua feliz lá para os lados do Qatar. Se as minhas contas estiverem certas, esta edição do NC chega-vos às mãos no dia em que Portugal vai jogar os oitavos de final. Deixem lá isto dos direitos humanos… vão ver a bola. *

* Na eventualidade de alguém estar a ler pela primeira vez uma crónica minha, deixo a indicação de que o autor costuma usar a ironia quando algum assunto lhe provoca raiva e indignação.


Crónica publicada na edição 445 do Notícias de Coura, 6 de dezembro de 2022.



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