terça-feira, 3 de março de 2020

Viver não deve ser uma obrigação

Escolher o tema para a presente crónica foi relativamente fácil. Não podia fugir ao assunto que tem ocupado a imprensa nos últimos dias: a eutanásia. Já em Junho de 2018 (edição 343 do NC) escrevi sobre esta matéria, tendo terminado a crónica com a seguinte frase: No nosso país continua a existir o “dever de viver”, não o “direito de viver”. Estamos a 157 minutos de ver esta situação alterada. Sim, 157 minutos foi o tempo que a Assembleia da República reservou para debater a matéria e, aprová-la. Não vou naturalmente aborrecer os leitores com aquilo que penso, vou-me limitar a expor alguns factos curiosos sobre esta matéria.

1.     Estranho a posição da igreja católica em vir agora defender a realização de um referendo. A igreja sempre assumiu que as questões relacionadas com a vida não eram referendáveis, mas percebe-se a mudança, é uma última tentativa de reverter um assunto que está prestes a seguir outro caminho. Por outro lado, não me agrada ouvir alguns representantes da igreja católica, bem como representantes de partidos de direita, vir agora com o discurso da “aposta nos cuidados paliativos”. O que têm feito nos últimos anos sobre esta matéria?

2.     Estranho a posição do PS em encabeçar uma das propostas que será votada, bem como a posição do PSD em dar liberdade de voto aos seus deputados. Nenhum destes partidos incluiu no seu programa eleitoral nenhuma frase sobre esta questão. Os únicos partidos que o fizeram foram BE, PAN e Livre. Julgo que os partidos só deviam ter direito a propor legislação sobre matérias para as quais os eleitores lhe confiaram o voto. Mas em Portugal já ninguém estranha, os programas eleitorais são uma coisa, a campanha eleitoral outra e a governação/legislatura acabam sempre por ser diferentes.

3.     Estranho a posição de todos aqueles que atiram agora argumentos como, “vão matar os velhinhos todos”, “a vida humana vai ser descartável”, “ vai haver um abuso sobre a eutanásia e vai-se matar a torto e a direito”. Já na altura da aprovação da legislação relativa ao aborto a conversa era mais ou menos a mesma. Os dados mostram o contrário, o número de interrupções voluntárias da gravidez não aumentou, e quem a ela recorreu não o teve de fazer nos perigos da clandestinidade.

4.     Estranho que se acusem os países onde esta prática é legal, em todos eles o processo é longo, exigente e complexo. Não se trata de uma mera viagem turística só de ida.

5.     Não estranho o silêncio do Presidente da República. Obviamente que a sua posição é contrária, e obviamente que vai vetar o diploma. Obviamente também que depois a Assembleia da República se limitará a alterar meia dúzia de vírgulas e o Presidente terá de promulgar.

Termino com algumas palavras que li num artigo* de Alexandre Quintanilha de dia 12 de fevereiro no jornal Expresso: “Foi por vontade de outros que nascemos, não devemos exigir o mesmo da nossa morte. Como se poderá suportar a dor com medicamentos que por vezes são mais intoleráveis do que a dor que pretendem controlar?”

A vida de cada um só a si diz respeito. Quem somos nós para questionar a decisão de cada pessoa em querer viver, ou deixar de viver? “A forma como cada um quer morrer é provavelmente a decisão mais importante da sua vida”.



Crónica publicada na edição 381 do Notícias de Coura, 25 de fevereiro de 2020

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