terça-feira, 15 de julho de 2014

À conversa com um ferrador de cavalos

Eram cerca das 20 horas de um destes últimos dias do mês de junho e preparava-me eu para fazer 3 horas de fotografias junto ao Tejo, com Lisboa em pano de fundo, algumas nuvens no céu, o sol a preparar-se para se esconder e dar mais uma volta ao mundo! Com uma máquina já a trabalhar, na sua árdua tarefa de tirar as 400 fotografias que eu precisava para fazer cerca de 15 segundos de filme, e eu preparado para entretanto ir tirando umas fotografias ao longe, aos navios que passavam junto à Ponte 25 de Abril e aos aviões que se aproximavam do Aeroporto da Portela, quando surge uma voz: 
Então você é fotógrafo é? Já vendeu alguma fotografia? Há uns tempos estive aqui com um sujeito que ganhou um prémio com uma fotografia que tirou ali quase debaixo da Ponte Vasco da Gama, você tem que arranjar umas galochas dessas de pescador e ir até lá, agora que a maré está baixa! 
O meu primeiro pensamento foi talvez cruel, não pertencesse eu à raça humana, se calhar a espécie mais cruel que existe, pensei logo: olha a minha sorte, logo tinha que me aparecer aqui este “cromo”, já não se vai calar! E não calou! 
Nos primeiros momentos ainda fui respondendo às perguntas dele: Não, não sou fotógrafo. Nunca vendi nenhuma fotografia, faço isto apenas como passatempo. Talvez numa próxima vez eu traga umas galochas. Mas, as minhas respostas eram levadas pelo vento, nada do que eu dizia servia sequer para permanecer no mesmo assunto durante mais de 2 ou 3 minutos. Durante uma ou duas vezes ainda desesperei, quando vi passar uns aviões a baixa altura e eu de máquina na mão ansioso por disparar, mas achei, e bem, que desviar-me era uma falta de respeito e consideração, por alguém que gratuitamente me falava de tão variados assuntos. Começou por me dizer que tinha vindo do Brasil há 10 anos, já tinha um filho que tinha feito 3 anos agora em março, e que o “puto” era espertíssimo, sabia procurar os vídeos que queria no youtube e ligava e desligava o computador sem ajuda de ninguém. Depois falou-me do peixe, ele também era pescador, respeita e preservava as espécies, não pescava nada que fosse proibido, achava que o ser humano devia respeitar a natureza, pois ela fazia falta, talvez não para ele, mas para o seu filho. Mas aqui em Portugal já se está a tratar disso, vão fazer uma lei que vai proibir o uso de redes de arrasto aqui no estuário do Tejo, para não estragar o alimento da amêijoa. Mais tarde, falou-me dos barcos, aqueles grandes navios que você vê lá ao fundo, aquilo não trabalha a gasóleo, só usam o gasóleo para arrancar, depois trabalham a crude. Já viu o preço do barril de crude? 100 Dólares? É um exagero. Este mundo está uma miséria, queixava-se ele, e falava-me do conflito israelo-palestiniano. Uma desgraça, vão-se matar todos. Se aquilo tivesse lá petróleo os americanos já tinham ido lá resolver o conflito. A conversa passou ainda pela crise em Portugal, o Mundial de futebol no Brasil, o preço do peixe na lota, no mercado e nos restaurantes, a justiça de Portugal que castiga mais os polícias que os ladrões, entre outras coisas, das quais fui um ouvinte atento e interessado. Já o sol se tinha escondido, quando a conversa, talvez trazida pela escuridão que se aproximava, foi levada para o lamento de ter abandonado o país há tantos anos em busca de emprego e melhor futuro, e agora ver o cunhado: um puto novo, tem 23 anos e é informático, e não quer sair daqui. O país não tem lugar para ele, e ele não quer ir para o Brasil, eu tenho lá um primo que lhe arranja emprego na área. No Brasil a informática está “dando dinheiro”. Eu também vim para Portugal sem conhecer nada nem ninguém, trabalhei nas obras, na pesca e agora estou estabelecido como ferrador de cavalos. 
Entretanto, o telefone tocou, era o “puto” de 3 anos que chamava o Pai para ir comer. Despediu-se desejando-me felicidades. Retribuí. 
Nessa altura desliguei as máquinas, há muito que elas já não estavam a fazer nada verdadeiramente interessante. Fiquei a pensar no cunhado daquele homem, desempregado, e informático, como eu. Será que eu teria a coragem de atravessar meio mundo e ir para o Brasil? Será que eu seria capaz de abandonar o país e fazer como ele fez há 10 anos? Não sei. Sei que nos últimos meses, centenas de portugueses têm tido essa coragem, e têm deixado o país e a família e partindo por esse mundo. 
Portugal voltou a ser um país de emigrantes, com uma ligeira diferença da geração de 60/70 do século passado: muitos deles, não levam na bagagem o desejo de voltar.

Crónica publicada na edição 253 do Notícias de Coura, 8 de julho de 2014.

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